Eu sou da roça!



 Bem, esta é apenas uma meia verdade. 

Eu nasci em Brasília. O ano? 1974. Vim ao mundo pelas mãos de um médico militar. Num hospital militar. Vivi 14 anos em uma vila militar. E era essa vila que a a gente chamava de roça! 

Era a melhor roça, claro! Nossas casas eram confortáveis, sem luxo, mas muito dignas e espaçosas. Tinha quintal com frutas e jardim com flores. Havia policiamento ostensivo e éramos como uma grande família. Nossos pais organizavam competições, festas juninas com quadrilha ensaiada pela dona Dadá - uma senhora negra, bem idosa, que provavelmente descendia de família escrava e era a nossa alegria nos meses de junho!


Havia um clube de sargentos e subtenentes em que a molecada se acabava na piscina, nos parquinhos e nas quadras de esporte. Ou só sentada nas mesas comendo coxinha frita e refrigerante tubaína. Era o que nosso escasso dinheiro podia comprar e era maravilhoso.

Por que chamávamos de roça o Setor Militar Urbano? Nos anos 1980, quase ninguém conhecia a vila. Só quem morava mais perto, em bairros como o Cruzeiro novo e velho. Mais roça ainda era o RCG, outra vila militar destinada aos servidores do regimento de cavalaria da Guarda. A maior aventura era pegar a bicicleta e atravessar o cerrado para chegar no RCG.

Nosso bairro era uma roça urbana. Mas de tão pequeno, e isolado, nós o apelidamos de Sertão Militar Urbano.

Não bastasse viver e estudar nesse paraíso, meus pais possuíam uma roça de verdade. Uma chácara localizada a cerca de 80 km de Brasília, para onde meus pais se mandavam todos os fins de semana. Para mim, naquela época, era horrível ir todos os fins de semana para lá. Queria ficar com os amiguinhos do Setor. Mas hoje vejo como uma bênção ter crescido entre a cidade e o campo, mesmo que fosse tudo muito simples. Nossa casa da chácara era muito humilde, mas de noite, o meu pai se sentava conosco na varanda e, à luz de lampião, contava estórias fantásticas, mitologias e folclores. Para nada faltar, havia uma história de medo ou de suspense. Uma delas era a história do fogo fátuo, que "caía" nas nossas terras porque deveria haver ouro por ali. No outro dia, minha irmã e eu, pegávamos os cavalos e íamos procurar o local que o fogo havia caído. Talvez a gente conseguisse ficar rica para ter uma piscina de verdade.


Houve uma época em que um irmão do meu pai ficou em dificuldades e veio morar na casa do caseiro. Ele veio com a numerosa família. Se me lembro bem, eram oito primos, mais meus tios. Eu adorava ir para a roça enquanto eles moraram por lá. Minha tia Nilda era super animada e tinha uma risada incrível. Minha melhor amiga era a Juliana. De vez em quando ela ia para Brasília ficar conosco. Vivemos momentos maravilhosos, menos as vezes que meu pai decidia selar o cavalo para nós, a sela sempre virava. Preferia pedir ao meu tio ou ao caseiro que ficou no lugar dele quando ele e a família voltaram para o interior de Minas Gerais. (Outra roça, casa da vovó - que eu adorava ir. A cidade pequena, com cara de cidade, era adorável e muito diferente de Brasília!)

Meu pai vendeu a tal roça, por onde passava um rio incrível e que éramos proibidos de chegar perto sem ele, em 2006. Fiquei triste, mas entendo que era muito trabalho e muita despesa para ele sozinho. 

A roça se foi, mas as histórias vividas ficaram. 

Meus pais nos proporcionaram uma infância e adolescência muito felizes. Muito saudáveis e cheias de aprendizado. As experiências da vida no Setor Militar, onde éramos todos iguais, com as mesmas oportunidades e interesses seguem comigo ainda hoje. Hoje o Setor já tem até placa de "Bem-Vindo" e o número de casas cresceu, mas até os anos 1990, quando saímos de lá, o SMU era bem desconhecido. Menos a igreja, o Oratório do Soldado, uma linda paróquia que os jovens de Brasília gostavam de usar para casar.

As vivências na Chácara, com animais, plantações, adversidades e fartura trazida pelas mãos dos meus pais me ensinaram que tudo o que conquistamos com alguma dificuldade tem mais valor. Tem sabor de vitória. Minha mãe ensinou desde ferver leite e separar nata, até torrar café e matar galinha. (ECA) NO SMU, tive a fortuna de crescer com brincadeiras na rua e muitos amigos da mesma classe social. 

Foram anos incríveis e eu tenho honra de dizer que sou da roça. E amo a roça. Pena Brasília ter crescido tanto. Tenho saudades do tempo em que nos deslocávamos para qualquer lugar em 10 minutos. E não havia tantos prédios, nem tantas construções. Era uma província tranquila. Muito Roça, onde todos acabavam se conhecendo. 

Agora somos completos desconhecidos em mais uma selva de Pedras.

Comentários

  1. Coisas da infância e adolescência marcam tanto, né? Formas nossas memórias, embalam nossas vidas. Que delicia conhecer um pouco mais de você. ♥️

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    1. A gente sempre tem histórias ricas para contar. Basta sacudir o baú!

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  2. Tão lindas são as nossas lembranças. Acho que boa parte da nossa vida hoje em dia, dê uma forma quase mágica, ainda acontece como se vivêssemos permanentemente naqueles tempos.

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    1. Acho que esses tempos de pandemia estão nos deixando saudosos...

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