Cada pessoa tem uma maneira de buscar paz interior e resolver suas questões pessoais. Eu escolhi percorrer os 800 quilômetros do caminho francês. Segue o relato de um caminho único, pois cada um tira sua própria conclusão e vive uma jornada paralela. É isso que atrai milhares de pessoas, e peregrinos, todos os anos.
Pedregoso, seco, duro, hostil, mágico e cheio de girassóis que enchem a alma de alegria. Assim eu caracterizo o Caminho de Santiago. A rota completou 800 anos em 2014. Entretanto, foi em 1982, quando João Paulo II tornou-se o primeiro papa a percorrer o caminho de Compostela, que o lugar passou a ser procurado por pessoas de todo o mundo.
O marketing do “CAMINO” é de inegável sucesso. No ano passado, cerca de 240 mil peregrinos (número fornecido pela Oficina del Peregrino, sem considerar os turistas), de cem países, passaram pela trilha.
Reza a lenda que Tiago Mayor, apóstolo de Cristo, teria seguido da Palestina até o antigo reino da Galícia levando a palavra do mestre Jesus. Os motivos para fazer o caminho incluem, dessa forma, os religiosos, de busca espiritual e de realização pessoal, além de esporte, turismo ou simplesmente para dar um tempo do estresse do dia a dia. A minha motivação foi o início de um ano bem ruim. Particularmente no âmbito profissional, por conta da continuidade do governo PT. Deixando isso de lado, posso afirmar com toda a certeza: eu não escolhi o Camino, ele me escolheu.
Comecei minha jornada em Nantes, na França. Apesar de ter lido tudo o que pude sobre a rota, me preparado física e psicologicamente, senti um temor quando entrei no ônibus para Bayonne.
De lá eu seguiria para Saint Jean Pied de Port – uma pequena, agradável e medieval cidadela francesa, localizada ao pé dos Pirineus. A porta de entrada do caminho francês para Compostela.
Depois de me registrar como peregrina e pegar meu passaporte, comecei a escalada. Imaginava o que me esperava, mas não pensei que seria tão difícil.
Comecei a andar às 10h de uma manhã nublada e fresca e terminei às 18h de uma tarde quente e ensolarada. A altimetria é grande, o desnível chega a 1.300 metros nos 28km que separam Saint Jean de Roncesvalles, já na Espanha, no país basco.
Grau de dificuldade alto, a cada passo eu me arrependia de tudo o que eu havia levado. E foi aí que tirei minha primeira lição: viver com pouco. Ter apenas o necessário. A vida precisa ser leve, bem como a mochila da existência.
Ao longo do caminho, separado de 20 até 27km para quem vai a pé, encontrei peregrinos se arrastando com os milagrosos bastões.
Cada pessoa carregava o peso das mochilas e da mente – esse é o pior. Havia gente de todos os tipos, mas o que mais me chamou a atenção foi o número de jovens (entre 16 e 20 anos) que se moviam tranquilamente. Certamente, como pude constatar, eram turistas.
O que mais me decepcionou durante o meu retiro foi o caráter turístico que tomou conta do Camino.
Em primeiro lugar, existem diversas rotas. O número de cidades pequeninas e quase fantasmagóricas que foram incluídas no caminho para que o turismo aquecesse a economia é enorme. Ao seguir as setas amarelas ou as conchas de Santiago, necessariamente você vai chegar a uma vila, a uma igreja de pedra e a um absurdo número de lojas e albergues. Estes resolveram utilizar as setas amarelas para indicar o caminho para suas instalações. Em alguns casos, essas indicações atrapalham quem segue o caminho, pois pode trazer dúvidas sobre por onde seguir.
A travessia dos Pirineus foi a pior parte. Meus pés explodiram em bolhas. Minhas pernas ficaram doloridas e cheias de alergia. Fazia muito calor e havia muitos insetos. Chegou a fazer 38 graus à sombra. Fora que o país basco é bem seco, com paisagens meio desérticas e feias aos meus olhos.
As bolhas e machucados me fizeram ficar parada por três dias. Daí veio a decisão de continuar o restante do “Camino” de bicicleta. Eu não conseguiria andar e perder tempo significava gastar mais com hospedagens. Não dava. Finalmente consegui a bicicleta, que aluguei em Nájera. Ali começou minha lua de mel com o Camino.
Durante 17 dias convivi com uma Taís diferente. Fui obrigada a deixar o trabalho de lado, o celular, a maquiagem, o esmalte e todo tipo de vaidade para trás.
Fiz as pazes e discuti com São Tiago e com Jesus Cristo duas mil vezes. Chorei e sorri. Me arrependi e me realizei diversas vezes por ter sido chamada pelo “Camino”.
Comi mal, dormi em albergues lotados de gente de todas as idades, nacionalidades e características físicas. Gente que roncava, que soltava pum, que não tomava banho. Gente alegre, triste, que dormia cedo, etc. Dividi banheiro, logo eu que sou tão chata, e me vi comendo pão seco com água da fonte porque era o que tinha para a hora.
Confesso que foi uma busca de paz interior bem divertida. Nem eu sabia que conseguiria dar longas risadas das minhas dificuldades. Foi um período sabático em que pude colocar ideias e decisões nos seus devidos compartimentos.
Fiquei quase sem dinheiro, não tinha como voltar para a França porque tive de modificar meus planos na última hora. Mas fui brindada com belas paisagens e centenas de vozes me desejando “Buon Camino!”
Essa é a parte boa da história: Ver que as pessoas estão ali imbuídas de um sentimento de amor ao próximo, de carinho e de respeito é muito gratificante!
Percorrer 800km com suas coisas dentro de uma mochila, sozinha e não ser assaltada, abordada, incomodada ou assediada é uma delícia. Se sentir seguro e protegido é bom demais.
Dou destaque para a educação dos motoristas nas estradas por onde pedalei, pois, não fiquei em apuros nenhuma vez.
Aquele escritor esotérico que me desculpe, mas o Camino não é glamouroso como ele pintou no livro escrito décadas atrás – embora eu tenha visto gente que estava lá por causa do tal texto.
O caminho é muito mais! É uma viagem turística para quem quer, uma viagem dolorida, ou alegre e cheia de aventuras com amigos, sozinho, de bicicleta, de ônibus, a pé. Se cada um deixar para trás o peso do passado e esquecer a ansiedade com o futuro, o Camino já valeu.
Mas isso você pode conseguir em qualquer lugar, não precisa se despencar até a Espanha.
Particularmente, não gostei do país: o povo é mal-humorado e a comida não me agradou.
No mais, Santiago e eu fizemos as pazes, consegui finalizar a minha rota antes do esperado, pois pedalei 140km no último dia. Não sou uma supermulher, nem uma atleta de ponta. Apenas achei forças em mim mesma para superar os meus medos e derrubar os obstáculos.
Cheguei a Santiago debaixo de chuva. Em frente à Catedral tocavam uma música divina. A Ave Maria ecoava maviosa e perfeita, saindo dos instrumentos e da voz de três artistas que se apresentavam na praça. Esse foi o sinal de que tudo o que eu passara nos últimos dias (calor, frio, fome, sede, dor, tristeza, solidão e tantos outros sentimentos e sensações) havia ficado para trás.
Naquele momento, eu soube: a Taís Morais que eu fora procurar em Compostela – tão longe – sempre esteve muito perto.
Agora estou certa de que o “Camino” começa depois que a caminhada termina.
Buen Camino (pela vida) a todos!
Show. Uma época tive vontade de fazer esse caminho... Hoje bem complicado...
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