Rua Doutor Flores






A rua Doutor Flores em Porto Alegre é íngreme e tomada de lojas comerciais nos seus dois lados. As calçadas são estreitas e, entre elas carros particulares e microônibus (os gaúchos chamam de “lotação”) passeiam lenta e preguiçosamente tentando sair do tumulto do Centro da Cidade.

Ele subia despreocupado a rua Dr. Flores, tinha marcado um encontro com sua namorada em um barzinho situado em um subsolo. Chopps gelados, música boa e uma companhia agradável era tudo que passava pela cabeça daquele homem de 30 anos naquela tarde de verão.
Até ele, firmar o olhar, se assustar e pensar estar vendo um fantasma. Uma assombração.

Ela descia a Dr Flores, rindo. Ele primeiro tentou negar que pudesse ser real o fato dela estar ali, na mesma rua que ele. Dois anos tinham se passado, os cabelos pretos estavam tingidos de loiro, não podia ser ela. Mas era.
O mesmo andar despreocupado, o mesmo riso feliz, infantil e debochado em meio ao caos urbano. Como se não importasse estar ali ou em qualquer lugar do Globo Terrestre. Os mesmos olhos vivos e atentos. Aqueles olhos costumavam queimar...

Durante 9 meses ela tinha mudado o mundo de nosso herói, tinha sido a primeira paixão na vida de um homem que se achava imune ao amor e vivia em relacionamentos vazios. E, depois desse tempo, devido à intensidade da paixão, eles decidiram tomar caminhos diferentes. “- A paixão é como uma fogueira”, disse ela em um dos momentos deles. 
“- Eu quero o fogo e quero a brasa depois dele.” , disse ele.
Ele sofreu demais. E as cinzas daquela fogueira, misturadas com suas lágrimas, viraram uma casca dura, que agora depois de dois anos rachava e se partia diante daquela que tinha tornado sua vida algo completamente inesperado e diferente.

Ele sentiu seus joelhos fracos e mesmo assim continuou a caminhada, ela continuava a descida sem perceber ele.

“Ela parece flutuar” , pensou ele. “O que devo falar com ela? Eu devo falar com ela? Droga o trânsito tá andando, não posso atravessar a rua! Devo dar meia-volta? Não, ela está próxima, vai perceber e talvez me chame! Droga, ela vai me ver! Pensa,pensa, pensaaaaa”

No exato momento em que eles iam cruzar seus caminhos, um palhaço que animava a entrada de uma loja de eletrodomésticos(com dois anões assistentes fantasiados de super-heróis) disse estridentemente: “ - Olá, moça bonitaaaaaaa!”

Ela se virou, sem parar de caminhar, e olhando para o palhaço respondeu sorrindo: “- Olá, Senhor Palhaço!”...seus cabelos, agora loiros, caiam sobre os olhos ao virar sua cabeça novamente na direção correta.

O coração dele parecia que ia explodir, “coçava “ por dentro! Ele parou, assim que passou ao lado dela. Seus joelhos pareciam querer dobrar. O olhar do nosso herói cruzou com o do palhaço, cuja a cara alegre tinha virado uma interrogação. 

“Devo ir atrás dela?Devo correr atrás dela ? Ela tá indo embora! Droga, eu vou cair no chão! E, se ela mudar minha vida novamente? E, se minha vida virar de cabeça pra baixo de novo ? Devo ir atrás dela ?”

Ele se virou e assistiu ela descendo a Dr Flores.
“Ela parece flutuar”- pensou novamente.
Viu ela dobrar a esquina da Rua Voluntários da Pátria e desaparecer.
Sentiu um alívio e uma dor. Sua vida ia continuar a mesma. Nada de loucuras ou sentimentos intensos. Isso parecia bom naquele momento.

Agora, os dois anões fantasiados de super-heróis e o palhaço encaravam ele. O palhaço não fazia mais graça. Ele tentou dizer algo aos três animadores, mas o que saiu foi um grunhido ininteligível: “ Grounntburrr” . A interrogação voltou ao olhar do palhaço .

Nosso amigo decidiu continuar seu caminho, subiu a Dr Flores e dobrou à esquerda na Rua General Vitorino. Desceu as escadas que levavam ao subsolo e ao bar. Sua namorada atual esperava em uma mesa. 
A música que tocava ao fundo era a música dele com aquela que tinha sido até então o único amor de sua vida. Ele não escutava aquela música desde o dia em que eles tinham “acabado”. Ele não acreditava na coincidência daquilo. Na verdade, ele não acreditava em coincidências.

“- O que foi! Viu um fantasma?” - disse sua namorada.

“-Não, Eu vi o amor...” a voz dele demonstrava uma tristeza e agonia que não foi percebida por Michelle.

“- Nossa amor, que lindo ! ” - ela sorria feliz - “- Eu também te amo! Você me ama, mesmo?”

“- Eu não estava falando de você, Eu acabei de ver a ...” - o arrependimento e compreensão da idiotice vieram ao mesmo tempo em que as palavras saíam de sua boca e Michelle chorando pegava sua bolsa e deixava ele sozinho em pé, com os outros frequentadores curiosos encarando aquele momento.  “Ficar parado como um idiota sendo encarado por estranhos está virando algo comum na minha vida?”


Ele se virou e viu sua futura ex-namorada subindo rapidamente as escadas. “Ela não parece flutuar”, pensou, antes dela desaparecer.

Decidiu ficar no bar, não tinha forças pra correr atrás de Michelle. Sentia-se fraco, sem vontade e sem argumentos. Sentia-se vazio e triste.
Pediu um chopp e um whisky duplo. 
E, colocando uma nota nas mãos do garçom, pediu para ele tocar aquela música novamente. E deixar a garrafa.

A noite seria longa. E, triste.

(Allan Marinho)




Comentários

  1. Rapaz, há quanto tempo não tenho uma leitura dessas. De torcer pelo tão sonhado "final feliz". A vida é assim mesmo, todos buscamos o melhor da vida, mas parece que às vezes, esse melhor do vida, escapa das mãos. Obrigado Allan pela agradável leitura. Parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir
  2. Acho que muitas pessoas conhecem essa situação... e se ela visse o herói? E se ela não fosse mais nada daquilo que fora... e se... se... são tantas as questões e hipóteses.. são tantas micheles de coração partido por um amor que não vão ter nunca. E muitas ruas dr. Flores. Te beijo

    ResponderExcluir
  3. Milhões de protagonistas e personagens assim. Na ficção e a vida real.
    Obrigado pelo comentário e carinho, minha amiga!

    ResponderExcluir
  4. É sério isso!? É sério mesmo? Logo você, o que me faz gargalhar no grupo, me tirou lágrimas? Eu senti toda apreensão do texto, coração na boca, olhos marejados. Te odeio!!!! Mas adorei o texto, Sensacional!!!!!!

    ResponderExcluir
  5. Hhahahaha. “Os Sofrimentos do Jovem Werther” me fez perceber que sofrer algumas vezes é algo bom.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe aqui a sua essência