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O princípio do prazer, de René Magritte |
E quando tudo parecia estar
resolvido e terminado e as diferenças acertadas tomou três tiros nas costas e
caiu no chão lento vendo a sua frente sua vida passar como numa tela de cinema
e pensou nos filhos e deixou que uma lágrima caísse de seu rosto contorcido e
ouvia no fundo atrás de si os risos e as traquinagens daqueles que um dia
acreditou serem seus parceiros e os sons se confundiam com o soar dos trombetas
e os gritos ensandecidos das sirenes de viaturas de polícia ou ambulâncias ou
carros de bombeiros ou simplesmente da festa de sua morte.
O que sobrara de todas
aquelas promessas de vida futura estavam agora inertes tombadas na sarjeta
escura de algum lugar no meio do nada e seus filhos não existiriam mais e sua
mulher desaparecera no breu das madrugadas levadas no fio da navalha e as
esperanças sumiram rapidamente como a fumaça de um cigarro que se dissipa no ar
como se num passe de mágica e ele ali deitado dormindo tranquilamente para não
acordar no dia seguinte e acreditar que tudo fora um pesadelo.
Mas as palavras foram ditas e
arremetidas contra seu corpo que não esperava nada que não fosse uma saída
plausível das tormentas pelas quais atravessava e somente os olhares
castradores e inquisidores de tantos anos passados em silêncio lhe vieram como
respostas a todas as malditas perguntas e as querelas caladas daquele tempo
explodiram numa violência sutil que lhe estuprava e sem que nada pudesse fazer
consentia com o crime e com a impunidade.
E sem atinar para o bem e o
mal se deixava levar pelas ruas desconhecidas que tomava sem a consciência de
que tudo aquilo o que quer que fosse não era o que realmente queria e o que
queria estava perdido nos livros esquecidos da juventude nos poemas condoreiros
de indignação nos contos de amor impossível que lhe caíam nas mãos nas pinturas
de lugares deixados para trás em viagens que pareciam até então simples e
corriqueiras mas que era ali que deveria construir sua casa de plataformas
sólidas e cimento consistente e lareira e um piano triste.
Não o fez e hoje jaz tombado
no asfalto frio sem a menor condição de se levantar e reerguer o castelo
suntuoso de tempos imemoriais e sangra compulsivamente deixando que se esvaia
de dentro de si os fluidos da vida e do amor guardados para as ocasiões
especiais que não vieram deixando que lhe levem embora as roupas que o
protegiam do frio assassino da solidão deixando que a morte seja enfim o
intervalo para o último ato que nunca existiu deixando que de uma vez por todas
sua vida seja vivida ainda que na memória patológica do post-mortem deixando serem devoradas as suas carnes pútridas pelos
cães famintos que rondam os que os temem deixando o tempo passar agora na sua
dinâmica quase natural quase funesta sem
as vírgulas que o atrasam.
Morrera num dia frio de outono sem que ninguém
soubesse.
(Esta é a literatura de Absolem...)
SHOW...
ResponderExcluirGosto da sua literatura. Gosto do realismo que me traz a sua crônica. O dia não vivido e o sangue derramado. Quem nunca?
ResponderExcluirUau !
ResponderExcluirCaramba! 👏🏻
ResponderExcluirCaramba! 👏🏻
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