Absolem viaja...
Como muitos leitores aqui já devem ter
percebido, eu sou o quinto elemento da Quintessência. Não que o grupo tenha me
conferido esta posição. Na verdade, nunca conversamos sobre o assunto. E espero
não causar um mal-estar tão grande com o fato de permitir-me conferir a mim
mesmo este lugar. Mas qual o significado que eu atribuo a essa aparente
bobagem? Que eu sou o espelho, o que incomoda, o que faz com que olhemos para
nós mesmos muito além das superficialidades. Pausa. Para que eu não seja mal
compreendido, faz-se necessário dizer que não considero nenhum dos meus
companheiros como sendo superficiais. Muito longe disso. Quero simplesmente
dizer que EU sou o que mergulha ainda mais fundo dentro de si próprio, sem medo
do que vai encontrar e volta à tona, incendiado pelo desejo de compartilhar
suas descobertas. E sem medo da própria exposição.
Então vou me expor. Na última sexta-feira, Ms. K
falou de passado, o que me inspira a fazer uma
comparação bem ordinária: eu seria o Ma-Ti, personagem do desenho animado dos
anos 90, Capitão Planeta. O Ma-Ti, indígena caiapó, representante da América do
Sul, tinha o poder do Coração, representava a sabedoria dos povos e as culturas
humanas, além de ser o mais sentimental de todos. "Absolem, Absolem,
talvez esteja lhe faltando modéstia, meu caro". É, talvez esteja. E daí?
Mas não é sobre a minha falta de modéstia que quero falar hoje. Mas sim da
NOSSA falta de modéstia.
Este espaço de criação e opiniões tem como breve
descrição a seguinte frase: "Cinco Pessoas. Cinco mundos. Cinco visões.
Cinco Essências para os cinco dias da semana." Pressupõe-se, a partir
desta brevíssima apresentação, que, ao longo da semana, cinco pessoas
completamente diferentes trarão aos leitores cinco realidades completamente
diferentes. Por estarmos usando as palavras MUNDOS e VISÕES, acho perfeitamente
lógica a compreensão de que traríamos à baila, de fato, cinco VISÕES DE MUNDO
diferentes. E aqui arrisco minha continuidade neste grupo: será que estamos
trazendo visões de mundo tão diferentes assim?
Voltemos ao Capitão Planeta. Para
quem não se lembra, Capitão Planeta foi um desenho animado da década de 90 que
tinha como mote principal a preservação desta nossa casa chamada Terra. O espírito
da Terra, Gaia, não sendo capaz de proteger-se sozinha do poder destruidor da
ganância de uns e outros, convoca cinco jovens para ajudá-la na missão. Somente
o poder combinado dos cinco era capaz de materializar o super-herói Capitão
Planeta. Quero chamar atenção aqui para os cinco jovens, os Protetores. Havia
um rapaz negro, oriundo de Gana, um rapaz branco, estadunidense, uma moça
branca, vinda da Rússia, uma moça oriental, sul-coreana e um rapazinho caiapó,
brasileiro. Ainda que composto pelas quatro grandes etnias que compõem a
espécie humana, o grupo dos Protetores de Gaia tinha mais brancos que qualquer
outra etnia. Nem tudo é perfeito. Mas a troco de quê eu estou falando em
Capitão Planeta? Apenas para continuar na minha comparação bastante ordinária:
até mesmo em um desenho animado, co-criado por Ted Turner trinta anos atrás, havia mais representatividade do que dentro deste grupo. Então como podemos
dizer que traremos CINCO VISÕES DE MUNDO diferentes?
O que é representatividade? Segundo Norberto
Bobbio, é a expressão dos interesses de um grupo por intermédio de um
representante de dentro do próprio grupo, que compartilha as visões e
experiências de mundo, as demandas e necessidades coletivamente. Portanto, não
há representatividade no Quintessência. Somos três homens brancos cisgênero e
duas mulheres brancas cisgênero. Não é difícil de perceber que as nossas visões
de mundo são muito parecidas, quase idênticas, eu arriscaria dizer. Isso sem
falarmos das posições que ocupamos na pirâmide de renda da população
brasileira. Dê uma olhadinha na figura abaixo: tenho certeza de que nós cinco
estamos entre os 16% que ocupam o topo da pirâmide. Exatamente por sermos
provenientes do mesmo grupo, do grupo dos fartamente privilegiados por conta de
sua cor de pele e de sua classe social de origem, nossas visões de mundo são
praticamente as mesmas. Sem que nos esqueçamos que raça e classe estão
intimamente ligadas e relacionam-se de modo interdependente.
Mas porque essa homogeneidade me
incomoda tanto? Talvez não viesse a me incomodar se eu ainda continuasse a
viver nos anos 80, quando até piadas de cunho claramente racista eram
permitidas nos programas de TV dominicais. Hoje me incomoda porque eu enxerguei
que o lugar privilegiado que ocupo construiu-se sobre os restos daqueles que,
ao longo de séculos, foram oprimidos pela sua raça, gênero e classe. Até muito
recentemente, eu acreditava que só o fato de eu não cometer atos de injúria
racista e de "ter amigos negros" fazia de mim um antirracista. Essa é
a mais estúpida ingenuidade branca. Digo "ingenuidade" porque não
posso acreditar que pessoas que estimo possam estar agindo de má-fé. Por
enquanto prefiro ficar com a versão de que, assim como eu dois anos atrás, eles
ainda não enxergaram a verdade debaixo de seus narizes. Eu sou racista. E
reconhecer-me como tal é o primeiro passo para que eu possa passar a ser um
antirracista. Nós, brancos, somos os vencedores da Grande História. Nós
ocupamos os lugares de poder, nós temos o dinheiro, nós temos acesso a melhor
educação, saúde e saneamento, segurança e habitação. E só somos vencedores
porque encaramos a história como uma disputa por uma supremacia falaciosa. E
para sermos supremacistas, nós usamos como principal ferramenta a opressão. E
para oprimir, nós precisamos calar o oprimido.
Enfim, essa homogeneidade de visões
de mundo em um grupo que se pretende plural (afinal é isso que está escrito no
cabeçalho de nossa página) me incomoda pelo que ela significa. Somos um grupo
de cinco jovens (nem tanto assim, mas vá lá que seja: tudo para manter a minha
comparaçãozinha ordinária), pertencente ao grupo dos 16% mais ricos da
população brasileira, que escreve para pessoas que também fazem parte do grupo
dos 16%, que estão muito mais preocupados em manter seus privilégios por
pertencerem a este grupo dos 16% do que em lutar para que a vida dos outros 84%
seja mais digna e mais parecida com a nossa. Estes cinco jovens não estão empenhados
na missão de salvar o planeta da catástrofe porque insistimos em trazer para a
discussão somente nossa restrita visão de mundo dos 16%. Eu inclusive! Quando
digo nós, estou dizendo NÓS de verdade.
O
nosso mundo, a nossa casa, só terá alguma chance de escapar de seu mais que
previsível fim, quando nós, os detentores dos privilégios, começarmos a abrir
mão deles, quando começarmos a compartilhar do excesso de que dispomos. Nós
aqui do Quintessência dispomos de voz. Estamos escrevendo nossos delírios
privilegiados de raça e classe todas as semanas. Estamos compactuando com a
Grande História, esquecendo-nos de que a verdadeira história se escreve no
dia-a-dia. Que hoje podemos escrever a história de mãos dadas com aqueles que,
por gerações, vivem em condições que nós não somos sequer capazes de imaginar.
Convido-os, portanto, a um exercício de reflexão para a produção da próxima
semana: Como podemos dispor do nosso espaço para dar voz a quem não tem? Que
histórias podemos contar ou recontar para contribuirmos um pouquinho para o
propósito dos Protetores e do Capitão Planeta? Afinal, como dizia o super-herói
ao término de cada episódio, o poder para mudarmos o mundo é todo nosso.
Durante esses anos tenho me deparado com uma máxima que aprendi, a chave está no ser humano. A partir dai tenho duas ponderações, a primeira, claro que podemos usar o espaço para dar vozes a quem precisa e a segunda, quem precisa quer esse espaço? Não quero aqui colocar a incapacidade de mudança na conta de quem trabalha de sol a sol, mas também não posso obrigar a ninguém a beber água. Uma vez uma professora marxista me disse, então tu acredita nas leis naturais... Eu respondi, claro que acredito. Porque se colocarmos aqui mesmo neste espaço nós cinco numa linha de largada é óbvio que não chegaremos empatados. Claro que numa sociedade justa a largada deveria ser igual para todos, mas com certeza a chegada seria para merecedores. Belo texto Bayard... Foi muito boa reflexão e concordo muito com que escreveu...Abraço
ResponderExcluirPortanto, só poderíamos nos atrever a discutir mérito se a largada fosse do mesmo ponto para todos.
Excluir:)
(Absolem)
Sempre bom ter um cutucão diferenciado. Uma porrada no estômago. Um chute na bunda para abrirmos os olhos e ver-nos tal como somos. Não o que achamos que somos. Infelizmente, não é só o Brasil que sofre com os problema da cor das pessoas, pois da raça, somos da mesma. Maioria dos brasileiros é negra. E com isso, a maioria de pobres é negra. Não sou “racista”, mas não acho que tenho qq culpa nos problemas sociais. Também eu sou de classe média e vim de uma família pobre. Não acho que não estejamos parados esperando a vida passar, mas acredito que o Discurso de raça e minorias tem que parar. Só isso já provoca distanciamento da realidade/utopia. Essa diferenciação entre pessoas, brancas, pretas, gays, trâns etc me dá nos nervos. Afinal, somos todos iguais. Uns com mais condições financeiras que outros, mas ainda, todos humanos. É assim deveríamos nos tratar.
ResponderExcluirNão somos iguais. Precisamos estudar Interseccionalidade.
Excluir:)
(Absolem)
Como diria Vera Verão: “ - Epa, epa, epaaaaa!!!”
ResponderExcluirBranco Eu não sou, sou cor de cuia (falavam isso quando eu morava no sul!), E, meu apelido lá em Porto Alegre era PRETO. E, por incrível que pareça até racismo sofri ahahhahaha. Afinal a maioria lá é branca.
Não vou entrar(ops) na sexualidade da Xande, ele é gaúcho e isso não quer dizer que ele goste de Bailar na Curva. Mas, não tenho mínimo preconceito com relação à isso, mas não vou perder a piada!
De resto, mais um texto maravilhoso.
Ps: Tô mais pra mameluco do que pra branco. Pode me chamar de moreninho também !
Bayard, adorei seu texto. Inteligente e nos provoca enquanto pertencentes a sociedade. Acho que agregaria também um gráfico mostrando o quão o dinheiro (ou, se me permite dizer, poder) está concentrado nesse 1%, e, talvez mais diluído, nos 3% que seguem na pirâmide. Precisaria ser um movimento geral, pois não atingindo até o topo, a tendência é continuar poucos com MUITO e muitos com pouco, ou até quase nada. Até o próximo texto.
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