NOVOS TEMPOS

Por Absolem


Eu tenho muita coisa para dizer. Para a coluna de hoje, cheguei a pensar em diversos assuntos: machismo e manbox, racismo, política, pandemia, precarização das relações de trabalho. Entretanto decidi deixar todas essas questões guardadas para textos futuros. Embora todos esses "remoinhos virulentos que me agitam a cabeça" (expressão cunhada por Raduan Nassar em seu belíssimo conto "O ventre seco") continuem latentes aqui em busca de saída, preferi me ater a algo que me anda perturbando a alma.

Vivemos tempos novos. Sombrios, ainda que novos. E me incomoda sobremaneira ver pessoas que ainda insistem em se utilizar de velhos paradigmas para tentar entender (e pior, julgar!) os novos tempos. Não escrevi nenhum texto novo para hoje. E não o fiz porque, em 2019, por ocasião da estreia da peça "Bailei na Curva", de Julio Conte, conterrâneo de nosso amigo quintessencial Xandi Guilamelon, que dirigi junto à Cia da Gaivota, grupo de teatro amador da FGV-SP, escrevi algumas palavras para que constassem do programa da peça. Segue aqui o texto na íntegra, com pouquíssimas alterações, visando apenas uma melhor contextualização.

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"UMA PALAVRA DO DIRETOR

Como diretor da Cia. da Gaivota, um grupo de teatro amador universitário, procuro ter sempre uma preocupação pedagógica, além da artística, na escolha dos textos propostos para nossas montagens. Após termos trabalhado sobre dois dramas em nossos espetáculos anteriores (A INVASÃO, de Dias Gomes - FEV/18 e AS BRUXAS DE SALEM, de Arthur Miller - AGO/18), achei que seria hora de investigarmos o universo do cômico.

Selecionei quatro textos de autores consagrados para que o grupo lesse e posteriormente votasse na peça de sua preferência. Na semana anterior ao dia marcado para a escolha, um dos atores sugeriu mais um texto para seleção. Era BAILEI NA CURVA, de Júlio Conte. Sabendo que o texto tinha também sua verve cômica, acatei a sugestão.

O grupo tinha um texto preferido e isso significava que eu teria que dirigir a montagem de uma peça que eu nunca cogitara montar. Em primeiro lugar, por ser um texto extremamente regionalista. O autor é gaúcho e, como todo bom gaúcho, ele traz o Rio Grande do Sul impregnado na alma. Sou neto de gaúcho e entendo que ser gaúcho é praticamente pertencer a uma nação. Assim sendo, Júlio Conte não tem pudores em escrever seu texto recheado de expressões e gírias gaúchas. E isso poderia comprometer o universalismo da peça. Eureka! Na verdade, o que torna o texto de Conte universal não é sua linguagem, é o seu tema: a perda da inocência pela qual todos, mais dia ou menos dia, passamos.

Mas algo ainda me incomodava. Talvez porque o contexto histórico da peça fosse a Ditadura Militar, um assunto que muito me interessa, tanto histórica quanto pessoalmente. Meu avô - o gaúcho - era general do exército na época. Ainda que muito me interessasse, considerava o assunto batido. Ademais, poderiam começar a tachar o grupo de panfletário, tendo em vista que nossas montagens anteriores foram de textos com claro viés ideológico. Mas a ascensão da intolerância nos meses que antecederam as eleições de 2018 me dizia que o assunto estava longe de ser esgotado. O cerceamento de liberdades de opinião e expressão correu o país de norte a sul, fazendo vítimas, até mesmo fisicamente. A ferida da Ditadura Militar nunca cicatrizou. Ela ainda está lá, aberta. E mesmo assim continuamos a flertar com o risco de abrirmos uma nova ferida. Então, como cidadãos e artistas, temos a obrigação de enfiar o dedo na velha ferida para que nos afastemos do perigo de uma nova. 

Em resumo, BAILEI NA CURVA foi sugerido por um aluno, vinte anos mais jovem que eu, que conseguiu canalizar a voz do jovem grupo. Sim. Porque essa é a história que eles querem contar. E querem contá-la porque têm medo. E exatamente porque têm medo é que têm CORAGEM para colocar o dedo na ferida, CORAGEM para expor no palco a perda da própria inocência diante de um mundo que não lhes dá ouvidos justamente porque são jovens, CORAGEM para fazer valer a liberdade irrestrita e inalienável, CORAGEM para ser quem de fato são.

Esses meninos e meninas, sem que o saibam, são portadores de espelhos mágicos capazes de nos fazer enxergar bem fundo dentro de nós mesmos. É preciso admitir que nossos 40, 50 ou 60 anos não nos fazem infalíveis, não nos garantem saber tudo nem mesmo saber mais, e tampouco podem nos proteger do fardo da nossa própria liberdade.

Que vocês, assim como eu, se deixem levar pela magia dos espelhos dessas crianças e que juntos consigamos fazer desse nosso canto no mundo um lugar melhor."

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Gostaria de deixar com vocês mais uma reflexão que vai ao encontro dessas palavras. Um poema de Bertolt Brecht (sim, eu sou de esquerda!).

AOS QUE VIEREM DEPOIS DE NÓS

Realmente, vivemos tempos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Comentários

  1. Perfeito. Que belo texto. Gosto muito do bailei na curva. Aqui no RS de vez em quando entra em cartaz. Como o musical Cats, várias edições. Que bom Bayard, não sabia que tinha esse sangue gaúcho. Bem vindo a nação... kkk

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  2. As Bruxas de Salem. ❤️ Que olhemos pelo espelho de nossas crianças e enxerguemos neles o que éramos tempos atrás! Beijo!

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  3. Os dois textos colocados são muito bons. O seu, escrito ano passado, me parece tão atual quanto o poema de Brecht. De ditaduras em ditaduras, vamos deixando nossa pegada de carbono por aí. Espero que melhoremos e os tempos deixem de ser sombrios. Muito obrigada pela reflexão de hoje.
    Te beijo
    TM

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