FLUXO DE PENSAMENTO DE UMA NOITE INSONE

por Absolem

Eu sou um experimento. Eu sou um experimento de mim mesmo. Nos últimos anos, eu tenho sido um grande laboratório em que o objeto de estudo, a cobaia sou eu mesmo. Isso em vários aspectos. Vários aspectos: o profissional, o amoroso-afetivo, o religioso etc. Eu tenho pensado muito, ultimamente, naquele conto do Guimarães Rosa, "O espelho", e tentando esmiuçar a minha identidade, da mesma forma que aquele personagem se investigou. Eu, além de mim mesmo, sou também a colagem de muitos outros. De outras pessoas que passaram pela minha vida, desde uma passagem simplesmente genética, como alguns antepassados que não cheguei nem a conhecer, passando pelos meus pais, pela minha irmã, pelos meus tios, primos, avós. Pelas pessoas que passam pela sua vida cotidianamente. Pelos amores, pelos desamores. Pelos afetos e desafetos. Pelos amigos, os velhos e os novos. Por homens e por mulheres. Pelas mulheres.

Quando eu faço um retrospecto das mulheres que me compõem, eu chego a ter muito orgulho hoje; orgulho de ter passado pelas mãos dessas artistas. Porque, nestes últimos anos, os artistas que moldaram este homem, que hoje sou, foram praticamente só mulheres. Nos três últimos anos, o único homem que eu posso dizer que ajudou a desenhar esta pessoa que hoje sou, foi alguém que me trouxe experiências muito negativas, foi alguém que queria destruir coisas. Foi alguém que me puniu. Não que as experiências negativas não sejam benéficas de alguma forma, mas antes, foram negativas. As mulheres não. Elas têm me auxiliado no processo de me construir, ou antes, de me reconstruir; de urdir este novo homem que hoje eu tento ser. E que, modéstia à parte, eu percebo um passinho minúsculo de evolução a cada dia.

Em primeiro lugar, eu preciso falar da minha ex-esposa. Os últimos três anos de casamento foram difíceis e ao mesmo tempo gloriosos. Por tudo o que esta mulher fez por mim, ao longo de mais de duas décadas, eu não encontro palavras que possam agradecer. Foi ela que me mostrou o meu machismo. Foi ela quem conseguiu mostrar para mim que a minha prática não condizia com a minha teoria. Foi ela quem me mostrou no meu espelho o reflexo de todos os homens que passaram pela minha vida a me construir, que por sua vez haviam sido construídos por outros homens que vieram antes deles, que por sua vez foram construídos por outros homens de eras pregressas, fazendo com que o nosso machismo se tornasse estrutural, arraigado até a alma. Minha ex-esposa me mostrou que, mesmo em face de muita dor, não minha, mas dela, eu a machuquei demais. E o fiz, por ser este homem... Eu tenho muito a agradecer. Se hoje eu posso arriscar dizer que estou num "caminho do bem", que eu estou num caminho saudável, de uma masculinidade mais saudável, é graças a ela, à minha ex-esposa, que dentre todas as mulheres, talvez tenha sido a que mais sofreu como consequência das minhas atitudes. Este é um grande exemplo de entrega e desapego da parte dela: o quanto ela se deixou machucar. Não estou aqui querendo eximir ninguém do fardo de suas escolhas. Muito pelo contrário: enxergo inclusive que mesmo a dor de cada um fora uma dor escolhida. Tivemos a coragem de escolher algo que nos seria nocivo para que, por outro lado, um bem vicejasse, um benefício que iria para além do benefício próprio. 

Foi ela quem me mostrou o meu racismo. A minha branquitude. Com ela que eu tenho conhecido pensadoras negras. E tenho me fascinado por este ponto de vista. "Ponto de vista" me soa até homem-branco-heteronormativo demais. As pensadoras negras nos mostram a sua carne sangrando. Nós, homens brancos, não sabemos o que é ter a carne sangrando diariamente. Sejamos honestos: nossa carne e nossa pele branca são imaculadas. As marcas e cicatrizes que carregamos são aquelas que escolhemos por conta dos desafios e das aventuras a que só nós, homens, nos achamos no direito de empreender. Porque somos os donos da história. Somos os vencedores e, como tal, os responsáveis por contar a história. Como consequência, não conseguimos enxergar absolutamente nada além de nossa própria e exclusivista perspectiva. As mulheres negras não. Da sua carne que sangra vem o seu "ponto de vista", de alguém que enxerga a pirâmide inteira porque está em sua base, de alguém que carrega todo o peso dos que vem acima. De alguém capaz de fazer o diagnóstico e também o prognóstico.

Foi minha ex-esposa quem me mostrou tudo isso. E eu abracei. E abracei. Tenho pensado muito naquele ditado: Atrás de todo grande homem sempre existe uma grande mulher." Não que me considere um grande homem... Por favor... Tomemos pelo "ponto de vista" cultural. Acho que as palavras corretas que deveriam compor este ditado seriam mais ou menos assim: "À SOMBRA DE TODO HOMEM SEMPRE EXISTE UMA MULHER MUITO MAIOR SENDO ESCONDIDA". E faço questão de usar a voz passiva - "sendo escondida" - para tentar denotar que não se trata da vontade da mulher, não é escolha dela, ela está sendo objeto da ação de terceiros, nós, homens. Insistimos em achar que somos os donos da História. Ridículo! Talvez, a partir do momento em que nos conscientizarmos que nós, homens, e mais acentuadamente nós, homens brancos, cada um de nós, não como grupo, mas como indivíduos, de que só somos donos da nossa própria individualidade, que não temos direito algum sobre nada e nem ninguém além de nós mesmos, talvez aí comecemos a ser capazes de respeitar a individualidade alheia, começar a respeitar o papel a que o outro tem todo o direito de exercer: o papel de ser LIVRE.

Eu, como homem, tenho vergonha dos homens, porque a imensa e esmagadora maioria de nós parece que ainda não entendeu nada.

Comentários

  1. Excelente... Tu sabes que depois de muito tempo nas sombras, porque teve uma época em que fui Vampiro, agora acredito que estou no caminho certo... Bom de mulheres nem se fala... gosto tanto que fiz duas lindas filhas... E hoje com o meu pequeno anjo, Felipe meu filho autista, aprendo todos os dias o significado de pureza...

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  2. Querido! Uma ode à sua ex-mulher. Esse texto me colocou em uma posição muito complicada. Me deu um nó na garganta. Talvez por não ter sido alguém com tal importância na vida de alguém. Talvez por ser egoista. Ou por me sentir apagada dentro de uma sociedade que escolheu determinadas qualidades nas mulheres, para que elas tenham sucesso, e eu não tenho essas qualidades. Te beijo! TM

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  3. Que o "caminho certo" seja sempre o caminho dos iguais e que num dado momento se transforme de "certo" em simplesmente natural. Boa caminhada, sentindo o prazer e a liberdade que isso traz.

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  4. Somos uma história, todos nós somos remendo de várias delas. Dos pais, amigos, das consequências e alegrias, bem como dores e tristezas. E que beleza tão verdadeira quando nelas aprendemos a vida, noa transformamos... Que bolo texto. Que grande homenagem. ❤️ Beijo e parabéns!

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  5. Aprendendo a cada dia, cada momento e cada experiência. Nunca estou plenamente pronto pra nada. Mês que vem mudarei de idade cronológica. O que sou, até aqui? Como cheguei até aqui? Como caminhar, além daqui? O que me espera logo alí? Acho que carrego mais perguntas do que respostas. Aprendi muito, ensinei... Perdi muito, achei... Escutei muito, falei... Mas tudo que vivi (tenho várias "ex" coisas), me fez ser quem sou hoje. Me vejo em algumas partes do texto e até lacrimegei, ao deparar comigo ali.
    No fundo, chego a uma conclusão: somos contraditórios!
    Estou em construção.

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